29 outubro 2006

recomeçar

primeiro um pé, depois o outro.

há uma janela no canto do quarto, com vista sobre o jardim. no jardim há um lago. durante o verão as enfermeiras passearam-me pelo jardim na cadeira de rodas. às vezes ouvia-se o mar.
a bata de hospital é azul anónimo. a cor assenta-me bem. olho-a na sua impessoalidade, no seu número inúmero de corpos que cobriu e acalmo-me. depois de mim, outros olhos procurarão a tonalidade das folhas que se abatem contra a janela ao cair, outros corpos se estirarão naquela cama que range, outros ouvidos procurarão o rumor do mar cobertos por esta mesma bata.

primeiro um pé, depois o outro.

o verão acabou. chove, dia sim, dia não, com uma precisão sequencial admirável. são pedro estudou a teoria do caos, gostou, e usa. as folhas batem na janela, entre o verde e o amarelo.
os meus pais deixaram de me visitar. há um certo embaraço familiar que se repete. quando voltei a casa da última vez, quando me foram buscar a casa de madrugada das três vezes em que...mas agora não. há uma calma constante, não interrompida pelas visitas de fim de semana, os olhares ansiosos a procurar uma razão, uma explicação, um motivo. os meus pais não me visitam. sem memória, não há culpas a expiar.

primeiro um pé, depois o outro.

o quarto é pequeno, tem uma janela no canto, as paredes são brancas, há uma porta que se abre para um corredor cheio de luz e portas iguais repetidas para a esquerda e para a direita. a cama é mudada cada três dias, a comida servida a horas certas. a temperatura é tirada semanalmente, bem como o peso. os médicos aparecem com um sorriso de padre satisfeito à segunda e à quinta.
aprendo os hábitos e rotinas, entranho-me neles. escovo o cabelo de manhã, lavo os dentes e tomo banho. as enfermeiras tratam-me bem, os médicos sorriem. colaboro.

primeiro um pé, depois o outro.

contei os azulejos. quarenta e dois. um passo é um azulejo e meio. são quase trinta passos. não há bengalas, o quarto está nú. tenho-me só a mim, estas pernas que tremem, e se esqueceram de como andar, estas mãos inúteis que nada moldam, este corpo vazio, as chinelas descartáveis.
há quem morra por hábito, há quem morra por desespero, há quem morra por amor, há quem morra por cansaço, há quem morra porque sim.

primeiro um pé, depois o outro.

guardei os comprimidos debaixo da almofada. hoje mudam a cama. a luz entra no quarto em roldões quentes, espalha-se pelos cantos, flutua sobre a cama, entranha-se na cova desenhada pelo meu corpo. doem-me os músculos das pernas, a bata empapada de suor, folhas vento mar.

primeiro um pé, depois o outro.
uma vez. outra. outra. e mais uma.

hoje vou abrir a janela e recomeçar.