27 junho 2005

frio

decidi deixar crescer as unhas. enquanto aguentasse deixar crescer as unhas, sentir o sujo invisível a acumular-se debaixo delas. para sobreviver tenho de me concentrar nos pormenores importantes. inspirar, expirar, comer, dormir, beber líquidos, apanhar sol, todas as pequenas coisas que asseguram a chegada de mais dias. deixei as minhas obsessões de lado, as unhas a crescer, as crostas das feridas intactas, os pelos nos sovacos e nas pernas para conseguir concentrar-me o mais possível no esquecimento da tua ausência, para aguentar a distância avolumada entre nós.
falhei, claro, como em tudo.
acabei por cortar as unhas incapaz de aguentar a sensação do sujo invisível a crescer debaixo delas, a corroer-me a pele para arranjar mais espaço, arranquei as crostas de todas as feridas para me beber o sangue e rapei os pelos das pernas e dos sovacos. nesse dia esqueci-me de comer e dormir e depois perdi a conta dos dias, o sujo a acumular-se em cada recanto da casa, as unhas impecavelmente cortadas rente, as crostas renovadas cada dia, os pelos invisíveis e a pele macia. um dia acabou-se-me o que comer em casa e saí e esqueci-me das chaves. também não me lembrava do caminho de volta, mesmo se tivesse as chaves. por isso deixei-me ir ficando por onde andava.
tenho as unhas compridas, com uma linha negra debaixo delas a corroer-me a pele para arranjar mais espaço, os pelos encaracolados nos sovacos e só ondulados nas pernas, uma superfície de crosta vermelho escura e preta do peito aos pés. esqueço-me de dormir, de comer, de apanhar sol e às vezes esqueço-me de respirar.
às vezes vejo a tua cara e não sei se sonho ou se és mesmo tu. no outro dia pareceu-me ler na tua cara "que nojo. deviam tirar esta gente daqui"
parecia mesmo a tua voz. tentei seguir o som cristalino dos teus passos na calçada, mas não me consegui levantar. hoje tenho frio, muito frio, apesar do placard electrónico aqui em frente indicar vinte e seis graus. se calhar o meu corpo está a mudar. se calhar o meu corpo está a libertar-se de ti, porque nunca tive frio contigo. tinha sempre tanto calor, calor de tirar a roupa, calor de te abraçar, calor de te ouvir nas escadas com o teu passo cristalino de suor.
mas agora está tanto frio que eu já mal consigo manter os olhos abertos. apetece fechar os olhos um bocadinho para te ver sorrir quando abres a porta e atiras as chaves para cima do sofá e os sapatos para qualquer lado. apetece fechar os olhos um bocadinho para ver o contorno da tua silhueta desenhado na cama enquanto tomas um duche, pleno de vapor espalhado pelo quarto. apetece fechar os olhos um bocadinho porque está tanto frio e eu queria tanto que me aquecesses e queria dizer-te que perdi as chaves de casa, mas também já não sabia o caminho de volta porque tu não estavas lá e eu já não te conseguia cheirar e queria que soubesses que está tanto frio agora e
13/05/04

1 comentário:

Anónimo disse...

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