30 novembro 2006

salvacão

salvam-me quotidianamente.
ontem a vizinha de cima quando começou a gritar com o filho às três da tarde. olhava os comprimidos há meia hora. não sentia medo deles. revia mentalmente o gesto de os tomar, por cores, ordenados como um arco-íris. mas aqueles gritos perturbaram a minha harmonia. levaram-me de volta aos anos adolescentes quando a minha própria mãe gritava em síndroma de privação. vomitei todo o almoço, o chá, uma bílis esverdeada.
hoje foi o carteiro. enganou-se na porta. a encomenda era afinal para o sobrinho do vizinho da frente, aqui a passar férias. encomendou uma merda qualquer na internet. mais gritos. tinha decidido onde fazer os cortes, a banheira a encher de água, os tampões quase nos ouvidos. mas um tipo alto a perguntar pelo nome de telenovela mexicana do sobrinho do vizinho da frente, a desculpar-se por ter interrompido o banho enquanto te come com os olhos também não é uma imagem que queira levar como a última interacção humana digna de registo.
na verdade, eu gostaria que viesses cá a casa, jantássemos como antes, que eu contasse piadas e te risses não delas, mas de mim, nos despedíssemos com um beijo nos lábios e fosses para casa. às três da manhã não há gritos neste prédio. eu poderia fechar os olhos, ver só o teu sorriso e tomar os trinta e seis comprimidos. teria bebido um copo de vinho branco, desligado o telefone, e posto um disco, sabes, o disco, a tocar, entraria na banheira cheia de água quente a espalhar vapor pelas paredes da casa de banho, e estaria tudo no lugar certo. às seis da manhã, uma mensagem seguiria automaticamente para o meu editor solicitando-lhe que viesse cá a casa com a chave que tem. ele acharia estranho o suficiente uma mensagem minha, ainda mais às seis da manhã, e viria ao meio dia, entre reuniões. o manuscrito está pronto faz depois de amanhã três semanas, pousado na mesa da sala à espera.
mas há sempre alguém a gritar neste prédio. a trazer-me de volta. quero morrer em paz, aqui em casa, rodeada de ti ainda. cada dia se torna mais díficil cumprir a promessa que te fiz. esta dor não me larga. às vezes quero muito chorar. sinto as lágrimas quase nos olhos, quase, quase, quase. mas trago-te de volta nessas alturas. o cabelo a cair-te às mãos cheias, e o sorriso que mesmo assim mantinhas. as unhas a partirem-se, a morfina aumentada cada dia, e o teu sorriso. só o teu sorriso este tempo todo, o teu pai que só apareceu no fim para levar o que queria, o caixão coberto de flores, a campa nua no inverno. o teu sorriso.
sabes, começam a crescer as primeiras folhas nas árvores. abro os teus álbuns, as fotografias antes do hospital. maravilho-me. com a vida apanhada num instante. e sorrio. como antes. como se estivesses quase a chegar quase, quase, quase. fotografo as minhas mãos cinzentas. a morte apanhada um instante antes de chegar. e choro. choro. torno a chorar. há folhas que crescem nas árvores, pessoas que gritam, telefones que tocam, prazos que chegam e são ultrapassados, bicicletas a chiar, pássaros com as vísceras no chão, palavras a ir e vir, imagens que seguem imagens, cães a ladrar. nada pára. se não houvesse lápide na tua campa, se as flores, as ervas daninhas crescessem lá, de ti...se...
sabes, o mais díficil de tudo é que não há um meio termo aqui. sê feliz. que é isso, ser feliz? que é isso, prometer-te ser feliz? o que é isto, fotografias, palavras, albúns de umas, livros de outras...mas o que é isto? este vazio que nem palavras nem imagens preenchem? o que é isto afinal? a tua campa nua no inverno antes da lápide. os corpos nus das nossas amantes. o silêncio nu da tua ausência. tanta nudez. não estás aqui, não há um meio termo. não há drogas, não há corpos, não há palavras de ordem. só este vazio nu do que fica depois. depois da nudez, o amor. e depois do amor, o que há a salvar depois do amor?

1 comentário:

Anónimo disse...

Nada. Não podes salvar nada.
Só a memória salva, e também por pouco tempo.